sexta-feira, 30 de julho de 2010

Pro Ana

"Eram todos medonhos. Com seus dedos amarelos, cobertos de farelo salgado, com suas bocas meladas de iogurte cor-de-rosa, roupas sujas de chocolate. Eram nojentos de se ver. O cheiro era insuportável. Saí do pátio da escola correndo de volta para a sala. O bom de correr é que a gente perde mais peso. Tentei acalmar a respiração até encontrar uma pílula. Por sorte encontrei a pílula primeiro. Difícil. Não sabia que engolir era algo que se esquecia ao perder a prática. Sinto um certo orgulho. Sinto o comprimido escorrer para dentro de mim, e evito o nojo. Sinto um calor que não é agradável, mas não interessa. Sinto um sorriso aparecendo. E espero sem sentir a hora passar. O sinal assusta. Eles voltam para a sala, sentam em volta de mim, balançam suas peles gordurosas e abrem suas bocas que cospem açúcar. Eu sorrio de volta. Vou sobreviver, apesar de vocês."

quarta-feira, 28 de julho de 2010

"O que havia era uma ausência tensa, uma tristeza densa, uma saudade imensa.
O que havia era um cômodo vazio, uma porta fechada, e pegadas sem volta.
O que havia eram espaços entre os sapatos, cereais sobrando, e uma toalha limpa em qualquer canto.
O que havia eram luzes não acesas, papéis não lidos, telefonemas não atendidos.
O que havia era um grande vácuo.
O que havia era um buraco negro
O que havia era um nome e sobrenome que quanto mais eram repetidos menos sentido faziam.
O que havia era o nulo, o obsoleto, o fútil.
O que havia era meu corpo desejando o seu, num lamento inútil."

terça-feira, 27 de julho de 2010

"Nem abriu os olhos. Tateou com a ponta dos dedos a umidade e pela viscosidade teve certeza que era sangue. Levou ao nariz. Um cheiro bom e um pouco desagradável. Coisas degradáveis eram boas em sua maioria. Continuou na umidade até encontrar a fonte, seu corpo. Tateando com carinho, foi criando outras umidades. Um pouco de saliva que gostou de engolir. Um pouco de suor que nem percebeu. E um toque delicado e viscoso que levou ao nariz por um segundo só para constatar o cheiro bom e agradável. Menos ferroso. Um cheiro de fruta que não conhecia. Um básico-ácido se fosse possível ela saber o que era isso. Voltou ao tato nos pêlos finos e na fenda úmida. Quanto mais carinho, mais molhado. Esqueceu do sangue e da mudança generalizada que iria ocorrer no dia já pré-programado para não se fazer nada. Quanto mais carinho, mais gostoso. Mordeu o próprio dedo. O outro. E percebeu o suor, quando percebeu a respiração mais alta. Apertou o maxilar e apertou o seu mamilo esquerdo. Seu pequeno e duro mamilo esquerdo. Apertou como apertou Michele. Mordeu o dedo quando lembrou de Michele. Quanto mais forte, mais lembrava de Michele. Tentou fazer como Michele fez com ela. Não era igual. Não era tão bom. Quanto mais rápido, mais alta a respiração, mais duro seus mamilos, mais vontade de Michele. Quanto mais Michele, mais molhado. Levou novamente o dedo ao nariz. O outro, pois o mordido agora estava descansando. Gostava do seu próprio cheiro. Melhor que bom. Mais que agradável. Abriu os olhos e viu sua primeira menstruação estragando o colchão. Se levantou, se preparou para o banho e foi chamar sua mãe. Agora era mulher. Poderia lembrar de Michele quando quisesse."

segunda-feira, 26 de julho de 2010

PAULICÉIA CITY

-fazer o quê?-


Já haviam se passado mais de 8 horas
Ela insistia em falar
e mendigar um pouco de atenção
Eu só queria espirrar em paz

quinta-feira, 22 de julho de 2010

"Há algum tempo tinha parado de ouvir. Parou de ouvir. Simplesmente. E curiosamente começou a escutar os sons de dentro. Com calma conseguia ouvir o sangue nas veias, o inflar dos alvéolos, conseguiu escutar o desmoronamento de camadas de cera que se formavam ao redor os tímpanos. Um dia se assustou acreditando ter escutado a corrente elétrica gerada pelo raspar das pernas no cobertor, não passou disso. Mastigar era um sofrimento, mas salivar era uma delícia de se ouvir. Tentou um dia ouvir os cabelos crescerem, não conseguiu. Chorar era nostálgico, fazia lembrar da infância, de momentos felizes, o som das lágrimas sendo criadas e expelidas fazia-o lembrar de viagens com a família durante as férias.Percebeu, quase sem querer, que ao fechar os olhos, um zumbido grave e baixo, sumia. Ver era sonoro. Surpresa. Ajudou a dormir. Dormindo, sonhou com um beijo. Acordou com o desejo de ouvir um beijo. O sangue correu mais rápido e o calor nas proximidades da pele tinha um som incomodativo. Teve uma ereção. A sensação era gostosa, mas o som do sangue enchendo os vasos cavernosos, a dilatação, a pele esticando, feria seus ouvidos. Tudo isso causou uma crise de ansiedade, que fez seu coração ficar mais alto que já ouvira. Levou as mãos para tampar os ouvidos, orelha, sei lá, e isso não importava, era um gesto inútil, já que o som vinha de dentro. Cada vez mais alto, a ansiedade e o desespero o fez respirar mais rápido. Os chiados dos pulmões, o sangue correndo, o coração batendo, a saliva desaparecendo, a pele secando, o pênis intumescendo, os olhos querendo ver mais do que podia. Seu corpo todo era uma orquestra de dor. Finalmente ouviu a descarga elétrica. Ouviu todos os poros responderem ao estímulo ao mesmo tempo. Ouviu os músculos retesarem e relaxarem. Não conseguiu ouvir a mudança de velocidade do sangue, mas talvez só porque não prestou atenção. Mas ouviu a descarga elétrica e ouviu o coração parar. Morreu. De vontade de um beijo."

segunda-feira, 19 de julho de 2010

"Foi só olhar para baixo que viu a mancha. Ali, na própria camisa. Sem pensar uma vez, passou a mão. A mancha ficou maior. E com outra cor. Além do vermelho original, o que sobressaía era um tom marrom. Olhou para a mão. Limpa. Alisou novamente, quase esfregando. A mancha aumentou, a camisa ficou úmida. Depositou o café que estava na outra mão em cima do balcão, sem notar que estava no meio de um corredor, tirou a parte que estava dentro da calça, afastou a gravata e levantou a camisa. Ainda sem pensar, se assustou com o que não viu. Não havia pele. Nem gordura, nem músculo, nem osso. Havia um coração. Exposto. Que batia compassado com o relógio, embora isso ele não tenha notado. Ainda. Quando finalmente começou a pensar, só conseguiu compor uma pergunta: Porque você é marrom? Sem saber responder, não estava acostumado, se re-compôs. Ajeitou a calça, a gravata e olhou para a mancha que ocupava já uma grande parte do lado esquerdo da camisa. Olhou o café sobre o balcão, e virou o copo sobre si mesmo, encharcando o lado direito, tornando a camisa por igual, suja e molhada. Retornou a sua baia, e sentando quase disse em voz alta: ninguém vai perceber a diferença. Mas não podemos chamar isso pensar, não é?"
"Quando ela percebeu, percebeu tudo. Percebeu as coisas e o mundo. Descobriu como a chamariam, lésbica, mania de adolescente de ar nome para tudo. Logo ela, que nunca gostou de ser chamada de nada, nem pelo nome, às vezes. Percebeu não tinha salas de bate-papo para lésbicas de 13 anos. E ela precisava muito conversar com outra lésbica de 13 anos. Percebeu isto quando foi conversar com alguém da própria classe e não sabia como, quando no jantar perguntaram como foi o dia e não sabia como, quando sentou diante de uma comunidade do Orkut para meninas que gostavam de meninas e não sabia como. Ela se percebeu, quando viu sua logo-logo-ex-amiga, dando o seu primeiro beijo em alguém que não era ela. Sentiu raiva, ciúmes, inveja e sensação desgraçada que não sabia o nome. Perceberam ela por perto, sorriram e disseram oi. Ela só pôde correr. Fugiu. Quando percebeu que tinha lágrimas nos olhos, que estava cansada mas ainda podia correr mais, que não sabia onde estava mas isso não interessava, que era profundamente apaixonada pela melhor amiga, que seria eternamente triste, percebeu tudo."

PAULICÉIA CITY

-um beco escuro-


A joguei na lateral de um caminhão
Bateu a cabeça
gritou
xingou.
Arfava exageradamente.
Sua pele branca brilhava no escuro.
Seu suor ficava preso nos meus pêlos
Seu cheiro ficava rondando minha respiração
cada vez mais seca
e alta.
Quando gozou
deu dois gemidos agudos.
Perturbando ainda mais
a noite parda dos gatos

quarta-feira, 7 de julho de 2010

"Eu que carrego comigo a herança em fotos dos meus pais, que carrego cansado algo para comer, que carrego tudo que posso dentro da minha mochilinha. Minhas perguntas, e minhas certezas, e meu destino, e minhas tristezas, e meu adeus. A chave carrego no bolso por costume, devia jogar fora, mas gosto de passar ela pelas unhas e me manter limpo. Carrego poeira no corpo. Restos de lamas nos tênis. Marcas de grama nos joelhos. Carrego a mágoa na garganta, e a certeza no olhar. Não me viro nem uma vez. Olhar para trás é criar uma esperança. E eu não espero mais nada. Sigo engolindo o mundo empurrando as calçadas para o passado. Ouço um adulto gritando e sei que é comigo. Ignoro e me apresso para qualquer lugar. Meu nome mais alto ou mais perto, não sei. Não penso. Tento correr na direção que imagino que tenha algum ônibus que me leve daqui.E minha gola me aperta quando é puxada. E me viram e me falam e me apertam e me pegam pela mão e me levam de volta. Não sei. Não penso. Só sei que dessa vez não deu certo, mas amanhã eu tento de novo. E levo todas as chaves comigo para não correr o risco de virem me pegar de novo."

terça-feira, 6 de julho de 2010

"- Eu fui até o rochedo durante a madrugada, me guiando apenas pelos dedos e pela oração. Os dedos que ainda tinha, o teu cheiro impregnado. O cheiro que o vento trazia até meu nariz que morria afogado em saudades. Morrer afogada em saudades. Rezava. Rezava e pedia perdão pelos meus pecados da carne minha com a tua. Dos nossos dedos em nós. Rezava, tateava, e ouvia o mar noturno e assustador, gritando meu nome no inferno. Quando o sol começou a nascer, eu puder ver de cima as pedras, as ondas, as espumas e o que tinha que ser feito. Rezava sem para ser perdoada, Santa Maria era mulher, deveria entender, não tinha conhecido homem, era como eu. Rezei, rezei, rezei e pulei. No inferno frio, escuro e molhado. Não morri. Mas sinto que lavei todos meus pecados. Agora estou pura novamente.
- E molhada.
- Sim.
- Está lavadinha agora?
- Sim. Estou pronta para pecar de novo.
- Se você for fazer isso toda vez, vai acabar gripada.
- Pensei que você gostasse de mulher limpa.
- Vem, deixa eu te esquentar.
- Foi por isso que fiz isso.
- Para quê?
- Para a gente ficar juntas assim."

segunda-feira, 5 de julho de 2010

PAULICÉIA CITY

-um lugar sujo-


E depois do que foi dito
ela continuava me olhando
com aqueles olhos que diziam
que sentia muito.
Que sentia muito prazer em acabar com minha vida.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

"Me sentia simples, e isso me dava uma impressão de triste. Olhava para perto, e assim, meus olhos caíam para pouco além dos sapatos. Não sentia fome, portanto minhas camisas pouco cobriam. Não haviam muito o que fazer em casa, então lia. Lia muito, e só sabia dos assuntos aprendidos em livros. Me chamavam de romântico. Minha mãe escolhia bem a genética que aparecia sem frente, e nasci bonito. Cresci sem agrados e sem espancos, diziam-me frio, quieto, ensimesmado. Todas as solas gasteis, junto com as calças, comendo poeira e chuva, mas pelo simples motivo de não querer se apertado dentro de um ônibus. Gostava de olhar para os olhos das pessoas, já que os rostos normalmente me eram vulgares, e me chamavam de profundo. Me amaram. Foi o que disseram. Não tenho provas disso. Bebi, comi, transei e voltei para casa todas as vezes, nunca expliquei o motivo porque não via motivo. Me amavam mais. Vivi incomodado, mas como era coisa minha, não comentei. Choraram e me apontaram dedos e me chamaram de frio. Mas eu só tinha aquela jaqueta. Sempre fui embora na hora errada, porque a chuva insistia em cair todas as vezes que estava sem meia."