quinta-feira, 22 de julho de 2010

"Há algum tempo tinha parado de ouvir. Parou de ouvir. Simplesmente. E curiosamente começou a escutar os sons de dentro. Com calma conseguia ouvir o sangue nas veias, o inflar dos alvéolos, conseguiu escutar o desmoronamento de camadas de cera que se formavam ao redor os tímpanos. Um dia se assustou acreditando ter escutado a corrente elétrica gerada pelo raspar das pernas no cobertor, não passou disso. Mastigar era um sofrimento, mas salivar era uma delícia de se ouvir. Tentou um dia ouvir os cabelos crescerem, não conseguiu. Chorar era nostálgico, fazia lembrar da infância, de momentos felizes, o som das lágrimas sendo criadas e expelidas fazia-o lembrar de viagens com a família durante as férias.Percebeu, quase sem querer, que ao fechar os olhos, um zumbido grave e baixo, sumia. Ver era sonoro. Surpresa. Ajudou a dormir. Dormindo, sonhou com um beijo. Acordou com o desejo de ouvir um beijo. O sangue correu mais rápido e o calor nas proximidades da pele tinha um som incomodativo. Teve uma ereção. A sensação era gostosa, mas o som do sangue enchendo os vasos cavernosos, a dilatação, a pele esticando, feria seus ouvidos. Tudo isso causou uma crise de ansiedade, que fez seu coração ficar mais alto que já ouvira. Levou as mãos para tampar os ouvidos, orelha, sei lá, e isso não importava, era um gesto inútil, já que o som vinha de dentro. Cada vez mais alto, a ansiedade e o desespero o fez respirar mais rápido. Os chiados dos pulmões, o sangue correndo, o coração batendo, a saliva desaparecendo, a pele secando, o pênis intumescendo, os olhos querendo ver mais do que podia. Seu corpo todo era uma orquestra de dor. Finalmente ouviu a descarga elétrica. Ouviu todos os poros responderem ao estímulo ao mesmo tempo. Ouviu os músculos retesarem e relaxarem. Não conseguiu ouvir a mudança de velocidade do sangue, mas talvez só porque não prestou atenção. Mas ouviu a descarga elétrica e ouviu o coração parar. Morreu. De vontade de um beijo."

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